O Versículo Quase Adulterado: Como o Judaísmo Antigo Tentou Contornar a Condenação de Deus ao Divórcio
O divórcio é um tema doloroso, e sua permissão ou condenação tem sido debatida nas tradições religiosas por milênios. No Judaísmo, o debate atinge seu ápice em um único versículo, notório por sua ambiguidade textual: Malaquias 2:16.
Enquanto a maioria das traduções o conhece como uma condenação divina, o texto hebraico original (e a interpretação de influentes escolas rabínicas) nos revela uma fascinante tentativa de reescrever a Lei em favor da conveniência humana.
A Condenação Inegável: Malaquias 2:14-16
O profeta Malaquias, o último dos profetas doTanach ou o chamado Antigo Testamento, confronta os homens de Israel por abandonarem as "mulheres de sua mocidade", quebrando a aliança conjugal. O clímax dessa repreensão está no versículo 16:
"Pois eu odeio o divórcio, diz o Senhor, o Deus de Israel, e o homem que se cobre de violência como se cobre de roupas, diz o Senhor dos Exércitos. Por isso, tenham bom senso; não sejam infiéis." (Tradução Comum)
A mensagem parece clara: Deus odeia o divórcio. O casamento é uma aliança de Berit (Pacto), e não um mero contrato civil descartável.
O Hebraico "Adulterado": Uma Questão de Pontuação
A polêmica, no entanto, surge quando examinamos o texto hebraico massorético (o texto com a pontuação de vogais), que é notoriamente difícil de traduzir em Malaquias 2:16. A frase-chave é formada pelos termos Ki saneh shalach (כִּי־שָׂנֵא שַׁלַּח).
O dilema é saber quem é o sujeito do ódio e o que o verbo shalach (enviar) realmente significa neste contexto:
1. A Leitura Teológica (Condenação)
Significado: "Porque [Ele/Deus] odeia [o ato de] repudiar/enviar embora."
Implicação: Deus é o sujeito. O divórcio é o objeto de Seu ódio, ratificando a santidade da aliança. Esta é a leitura adotada pela maioria das traduções cristãs.
2. A Leitura Rabínica (Permissão)
Significado: "Se você odeia [sua esposa], divorcie-se dela." (Ou: "O homem que odeia [a esposa], a manda embora.")
Implicação: O homem (não Deus) é o sujeito. A frase é lida como uma instrução que permite o divórcio caso o marido sinta aversão ou ódio pela esposa.
Essa segunda interpretação, que transforma a condenação divina em uma permissão legal, foi amplamente utilizada e debatida nas escolas judaicas da época de Yeshua.
A Conexão com a "Dureza de Coração"
Essa ambiguidade textual é o pano de fundo da famosa disputa legal na época de Yeshua (Jesus):
Escola de Shammai: Defendia a interpretação estrita de Deuteronômio 24:1, permitindo o divórcio apenas por imoralidade sexual grave. Eles mantinham a linha da condenação de Malaquias.
Escola de Hillel: Defendia uma interpretação leniente, permitindo o divórcio por "qualquer causa" — até mesmo se a esposa "queimasse a comida" ou encontrasse outra mulher mais bonita. Sua argumentação dependia da leitura de Malaquias como uma permissão ("Se você odeia, divorcie-se dela").
Quando os Fariseus confrontaram Yeshua sobre a legalidade do divórcio (Mateus 19), eles estavam, na verdade, tentando arrastá-lo para a briga rabínica entre Shammai e Hillel.
A resposta de Yeshua foi definitiva: Ele ignorou os debates e a interpretação tendenciosa de Malaquias, voltando ao princípio primordial: "Desde o princípio não foi assim." (Gênesis 2:24).
Conclusão: A Tradição Contra a Torá
A tentativa de ler Malaquias 2:16 como uma permissão em vez de uma condenação é um exemplo claro de como a Tradição Oral (Halacá) pode, por vezes, contornar a clareza da Lei Escrita (Torá) em nome da conveniência humana, o que Yeshua chamou de "dureza de coração."
A luta pela santidade do casamento não é apenas contra a infidelidade, mas contra a tentação de usar a lei para justificar o egoísmo.

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